Heresias não-binárias

sapatrrrans 1

Poderíamos pensar nossas crenças como espécies de lentes, através das quais se filtra nossa relação com a realidade (com corpos, afetos, o que se move em geral).

Existem crenças-lentes que nos limitam. Que recortam nossa possibilidade de discernir as diferentes nuances do que nos rodeia. Nos fazem agrupar corpos e pessoas em grupos uniformes dentro dos quais, muitas vezes, estas não cabem.

A crença de que as pessoas se dividem “naturalmente” e “biologicamente” entre Homens ou Mulheres é uma dessas crenças-lentes que nos limitam.

Através dessa crença, os discursos da medicina, da biologia, da psicologia, antropologia, etc, contruíram um conjunto de narrativas, que oferece sentido aos corpos (nossos e alheios).
A partir dessas narrativas da nossa sociedade, as pessoas são pressionadas a construírem entendimentos sobre si próprias e sobre as outras, com base nessa divisão.

Nossa cultura pressiona que a gente se entenda enquanto “indivíduos” (entidades que não podem ser divididas”) – entendimento a partir do qual somos responsabilizades moralmente, juridicamente, psicologicamente, etc. E dentro desse entendimento de si enquanto “indivíduos”, pressionam que a gente construa um “senso de pertencimento” a um gênero que essa mesma cultura nos assigna: “você será como um homem” / “você será como uma mulher”.

Assim, existem aqueles que muito crêem “sou assim porque sou homem, nasci homem, sempre serei assim porque sou homem”/ “sou assim porque sou mulher, nasci mulher, só poderei ser isso porque sou mulher” – ” [X pessoa] é assim porque é homem, nasceu homem, sempre será como homens” / “[Y pessoa] é assim porque é mulher, nasceu mulher, inevitavelmente terá esse tipo de comportamento”.

Tudo isso com base em ficções. “Homem” e “Mulher” não são entidades que existem de fato. São significados que nossa sociedade constrói, filtrando a percepção dos nossos corpos (peneirando sua diversidade, dissociando-nos do que não encaixa), filtrando a percepção dos nossos comportamentos (peneirando sua diversidade, dissociando-nos do que não encaixa), filtrando a percepção dos nossos afetos (peneirando sua diversidade, dissociando-nos do que não encaixa), etc.

Acontece que algumes dentre nós vivemos a partir de referências, sensações, e experiências que não se encaixam nas lentes-crenças do binarismo. Algumes dentre nós percebemos que a maior parte do que nos proporciona afeto, potência e sentido sobre quem somos, não cabe nas caixinhas “homem / mulher”. Algumes dentre nós olhamos pra essas entidades coletivas chamadas “Homens”, e não conseguimos entender como “sou um deles”. Algumes dentre nós olhamos pra essas entidades coletivas chamadas “Mulheres”, e não conseguimos dizer “sou uma delas”. Não por uma questão de vontade, mas porque nossas experiências simplesmente não cabem.

E apesar disso, não deixamos de ser socialmente cobradas a nos articular enquanto indivídues. Seria maravilhoso simplesmente transcendermos nossas identidades, não sermos cobrades (jurídica, moral, e psicologicamente) a ter uma resposta sobre quem somos (incluindo nossos nomes). Mas nós continuamos sendo cobrades a responder a pergunta “Quem é você?”, independentemente de nossa vontade ou desejo. E, no entanto, as respostas-padrão das quais dispomos para responder estas perguntas nos silenciam, nos invisibilizam, e nos violentam diariamente, lançando nossas vivências enquanto algo supostamente “delirante”, “fantasioso”, “narcisístico”. Muites dentre nós vivemos sob a contínua sensação de não-lugar, de não-existência (de uma forma muito mais extrema do que normalmente vivem as pessoas articuladas dentro de experiências cisgêneras*)

A partir disso, dessa vivência de não-lugar, muites dentre nós temos lutado para construir sentidos e narrativas próprios, auto-gestionados que, ao invés de matar e silenciar nossas vivências, lhe ofereçam alguma inteligibilidade às nossas experiências não-binárias de sexo-gênero.

Nós somos as pessoas trans não-binárias.
Somos corpos e vidas hereges, dissidentes, desobedientes à religião oficial que prega tudo dividir entre “masculino X feminino”.
Vivemos porque aprendemos a enxergar aquilo que o binarismo não sabe enxergar.
Vivemos porque aprendemos a ouvir aquilo que o binarismo não sabe ouvir.
Vivemos porque aprendemos a sentir aquilo que o binarismo não sabe sentir.

Compartilhamos afetos através das nossas peles, nossas línguas, nosses corpes profanes, reinventando sílabas, cumplicidades, alianças, afetações e magias.
Lutamos por um mundo outro, onde nossos corpos não se limitem pelos atestados médicos e jurídicos que nos designaram, pelos hormônios que nos atravessam ou deixam de atravessar, por nossos pêlos ou nossas genitálias, por como nos examinam ou deixam de examinar.

Por um mundo onde pulse aquilo que é mágico, delirante, múltiplo, absurdo, afetivo, aberto e dançarino entre todes nós.

[*pessoas cisgêneras → pessoas cujo senso de pertencimento a uma identidade de gênero coincide com as assignações médico-jurídicas atribuídas a quando esta nasceu.

Diferentemente de pessoas trans, cujo senso de pertencimento a identidades de gênero não coincide com esta assignação médico-jurídica.

Pessoas trans podem ser entendidas enquanto “binárias”, quando sua identificação dissidente articula-se a um dos 2 gêneros legitimados por nossa cultura (homem/mulher), e “não-binária” quando sua identificação dissidente não se articula a um destes 2 gêneros (seja por fluir entre estas identidades, seja efetivamente por não identificar-se com elas ) ]

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